Prólogo
A tarde aproximava-se do fim, naquele dia de Janeiro. O céu continuava num azul frio e limpo e no horizonte o sol majestoso dava sinais de começar a sucumbir à noite.
Sentado no alpendre, sobranceiro ao vasto e bem tratado jardim, Afonso olhava em redor, como se procurasse algo perdido. A relva estava bonita, cortada rente e verdejante. Ainda a reflectir os últimos raios de sol, cintilantes gotículas de água brilhavam nas suas esguias e curtas folhas. Tinha acabado de regar o jardim. Esta seria a última vez que o faria, tinha essa certeza. Das folhas das pequenas palmeiras, plantadas simétricamente, embaladas por uma suave brisa, escorriam pequenas gotas de água, parecendo-lhe lágrimas, assim como o suave balançar das folhas lhe parecia um adeus final e um agradecimento profundo e sentido por tudo o que fizera por elas nos últimos meses.
Puxou de um cigarro, acendeu-o e seguindo o fumo que se erguia no ar, sentiu algo estranho e ambíguo, um misto de tristeza e de alegria. Tristeza por saber que seria a última vez que estaria ali, tinha de se esquecer daqueles nove meses e meio, que lhe tinham trazido imensos desgostos e mágoa, e o facto de não querer recordar nunca mais isso, deixava-o visivelmente incomodado. Alegria por sentir finalmente, depois da sua decisão algo apressada mas ponderada vezes sem conta, que estaria livre de um pesadelo. Do outro lado do jardim, no pátio de saibro claro, virado para os portões completamente escancarados, permanecia o seu carro com o motor ligado, como se estivesse preparado para uma fuga rápida, depois de um assalto ou de outro crime qualquer. E era isso mesmo que estava em curso, uma fuga rápida, carregado com os seus haveres mais pessoais e íntimos, aquilo que habitualmente depois de uma catástrofe ou cataclismo, se consegue recolher, alguns despojos de guerra, isso uma guerra, aliás duas, a que terminava e a outra que se avizinhava, talvez tão cruel nas consequências como a primeira que terminava ali, naquele momento.
Os bancos de trás, bem como o da frente, estavam repletos, iria ter uma condução um pouco desconfortável, nos cerca de oitenta quilómetros que o separavam da casa dos seus pais em Lisboa.
Era para lá que tinha planeado voltar, para casa dos seus pais, por um tempo indeterminado pois também eles nunca tinham depositado muitas esperanças naquela relação, e já se tinham oferecido para o poder recolher em sua casa se alguma coisa não corresse bem. E de facto as coisas não tinham corrido bem, antes pelo contrário, correram sempre mal e tinham-se agravado nos últimos dias. Esta não era a primeira vez que tinha tentado sair. Recordava-se de todas as outras, treze para ser mais exacto, e não era simplesmente sair, era mesmo fugir. Escapar de um relacionamento mórbido, onde o ciúme doentio e amplamente sórdido, imperavam. Imposto por alguém que agora comparava e via como uma psicopata. Alguém que não tinha conseguido nem viver uma vida própria pacificamente nem estar em paz com ele.
Nas outras vezes, quando o tentou fazer, não estava sozinho como agora, nunca tivera a oportunidade que lhe surgira nesse dia, por isso mesmo, na semana anterior, tinha avisado os seus pais que se preparassem para o receber, pois era sua intenção levar a cabo essa fuga na primeira vez que surgisse uma oportunidade para o fazer.
Surgira essa hipótese, Afonso sabia que talvez fosse mesmo a derradeira e única, sabia que se não a aproveitasse iria arrepender-se para o resto da vida.
O cerco fechava-se, sufocando-o dolorosamente, afastando-o dos mais elementares simples gostos e prazeres que ele tinha pela vida. Já quase não tinha amigos e os poucos que conseguira manter, nunca deram muito crédito à sua manifesta e inconsolável tristeza. Portanto só lhe restavam os seus pais, os únicos que viram nas poucas vezes que estivera a sós com eles, a sua amargura, a sua vontade em desistir de tudo, inclusive da vida, tal era a infelicidade que Afonso mostrava.
Durante esses breves momentos de recordação da sua infeliz existência, dera conta que o seu telemóvel, que mantinha no bolso do casaco, tinha vibrado várias vezes, até lhe perdera a conta, não precisava de o atender para perceber quem estava desesperadamente a tentar falar com ele, sabia perfeitamente que Marta “sentia” que algo estava para acontecer e não era bom, para ela. Há já alguns meses que tinha retirado o som do telefone, pois era manifestamente insuportável o que ela lhe fazia, vinte, trinta chamadas ou mais por dia, e nos dias normais, pois tudo piorava nos outros dias, em que dela se apoderava uma estranha e doentia obsessão, ao ponto do cargo que desempenhava na sua empresa se encontrar em risco. Exercia uma chefia na área comercial, tendo chegado a abandonar clientes em reuniões, adiar projectos profissionais, a abdicar de viagens de negócios, não só pelos insistentes telefonemas, mas também por diversas vezes ter de efectuar um regresso a casa, mais ou menos atribulado, ou pura e simplesmente não poder sair de casa, pelas mais absurdas razões.
Determinado, desta vez não iria voltar atrás, como de todas as anteriores, não iria cair na chantagem emocional de quem muitas vezes tinha chegado a simular inclusivé o suicídio, provocando falsos desmaios, após supostamente ter ingerido uma lamela de comprimidos, espumando da boca, trancando-se muitas vezes na cozinha, com o gás aberto, dizendo que se matava e ameaçando de faca em punho cortar os pulsos se ele saísse da vida dela. Ou escondendo as chaves dos portões de ferro, que o deixavam encarcerado na propriedade em que viviam completamente isolada, e que se encontrava a um bom par de quilómetros da mais próxima povoação, Salvaterra de Magos.
Envergonhava-se de si próprio, por não ter tido coragem até aí de o ter feito mais cedo, pois sempre tinha sido uma pessoa destemida e determinada, sem receios de enfrentar fosse o que fosse, sempre tinha corrido riscos, é verdade que alguns calculados, mas sempre sem grande medo ou receio, mesmo os riscos que muitas vezes nos levam à infelicidade. E os que tinha corrido para ser feliz ao lado de Marta teriam assustado qualquer um, pois tinha a perfeita noção que o que decidira nove meses e meio antes, deixar uma vida confortávelmente alicerçada na cómoda mas instável situação de recém divorciado, tinha sido uma das mais difíceis de que se recordava.
Bom, mas isso agora iria fazer parte de um passado, doloroso e recente, com indisfarçáveis cicatrizes, mas para ele já estava a fazer parte do passado.
À sua frente, no muro alto que circundava a propriedade, pousou um corvo?!? Mau agoiro? Não achou que o fosse, apenas sentiu uma fria estranheza, sem chegar a ser uma grande admiração, pois o que se tinha passado por ali, o que lhe tinha acontecido nos últimos tempos já não o deixava ficar incrédulo, ou mesmo admirado, ainda assim, pensou por breves instantes naquilo que Marta lhe costumava dizer de cada vez que viam um corvo negro, um corvo sozinho era sempre sinal de um mau presságio. Talvez Marta lá no seu negro e maldoso íntimo tivesse razão, Afonso agora gostava que isso fosse verdade, entre outros, podia ser que fosse um mau sinal mas apenas para Marta. Desta vez iria deixar de o ver em definitivo. Esse instante foi tão breve como a presença da mórbida e negra ave, nesse preciso momento em que ambos pareceram trocaram um olhar, como se tivessem reconhecido e comparado a sua incontornável solidão. O corvo depois de um grito arrepiante e curto grito, levantou voo, e enquanto via o negro a desvanecer-se no céu, levantou-se, olhou por uma última vez em redor, o jardim estava lindo, e Afonso sentia um pequeno orgulho, não apenas pelo esforço e meses de trabalho, mas por ter feito renascer aquele jardim, que conheceu moribundo e abandonado quando ali chegara. Despediu-se como se de uma pessoa se tratasse, apagou debaixo do tacão do seu sapato, com indisfarçável nervosismo o que restava do seu cigarro e sem olhar para trás dirigiu-se ao carro, sentou-se, suspirou, deixou que um sorriso interior de efémera felicidade o invadisse. Subiu o volume do rádio e arrancou com velocidade...
No seu olhar, um brilho entrelaçado de raiva e de angústia quase não o deixava ver pelo espelho retrovisor os escancarados e pesados portões de ferro que propositadamente tinha deixado abertos...Sabia que isso deixaria completamente fora de si Marta, sempre assim fora, os portões fechados e o muro que cercava a propriedade eram muitas vezes a forma que Marta encontrava para fechar as suas vidas apaixonadas para o exterior. Ao deixá-los assim abertos não só a deixaria irritada como lhe deixava a sensação de libertar toda a sua vida que não queria deixar lá dentro...encarcerada.
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